quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Uma vida a serviço da poesia

Lúcio Ferreira é um genuíno artífice da poesia. Notório na elaboração de escritos em versos livres e na estruturação rítmica, sua poética atende a parâmetros muito particulares, não sendo guiada por convenções estéticas e formais de nenhuma ordem que não a sua inquietação ante o sublime que permeia a mais insuspeita nesga de cotidiano. A profundidade humanística da sua obra deriva deste assombro primordial e da capacidade de entrelaçar os diversos fios que compõem a malha do que se afigura aos sentidos como realidade.

A poetisa Lourdes Nicácio define com maestria a escritura do autor pernambucano. Diz ela: “Na poesia de Lúcio são constantes os espaços longos entre as palavras. A semiótica explica que o signo pode ser visto, também, através do vazio. Observem no seu mais recente trabalho publicado, Um Corte Além do Fio. Mas são espaços de alcances alternativos, circunstanciais. Como circunstanciais, dispersos somos todos nós, complexos, fragmentados seres humanos”.

O poeta nasceu no Recife, em 29 de abril de 1930. Cursou Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Pernambuco e empregou-se no Banco do Brasil, instituição em que se aposentou. Ao longo da sua trajetória, vinculou-se a É membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste, da Academia de Artes, Letras e Ciências de Olinda, da Academia Recifense de Letras, da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Regional Pernambuco), e da União Brasileira de Escritores – UBE (Seção Pernambuco).

Publicou os livros Um olhar para cada coisa, 2000; Exercício do sentir, 2000; As duas extremidades da luz, 2001; Linhas do tempo (Hai-Kais), 2002; Uma porta para dentro da pedra, 2002; As reticências dos sonhos, 2003; Estas coisas cá de dentro, 2004; Um pouco antes da chuva, 2006; Às margens de um Rio Cereal, 2006; Um corte além do fio, 2008. Participou ainda das antologias Poemas de Sal e Sol, 1999; Antologia de Poetas Nordestinos, 2000; Antologia do conto nordestino, 2000; e Reescrevendo contos de fadas, 2001.

Entre as laudas recebidas, destacam-se: menção honrosa no Prémio Amaro de Lyra e César, da Academia Pernambucana de Letras, 2000, com Exercício do Sentir; Prêmio Edmir Domingues, da Academia Pernambucana de Letras, 2004, com Essas Coisas Cá de Dentro; Menção honrosa no Prêmio Edmir Domingues 2008, da Academia Pernambucana de Letras, com Um Corte Além do Fio. Foi homenageado pela União Brasileira de Escritores – UBE/PE, na Livraria Cultura, em 2009. Nesta ocasião, vários autores se pronunciaram a respeito da sua obra/trajetória.

A fim de aprofundar suas reflexões sobre o fazer literário, Lúcio Ferreira freqüentou a Oficina literária ministrada pelo escritor pernambucano Raimundo Carrero e participou do Café Literário do Recife, sob a orientação do professor Sébastien Joachim, valendo-se destas situações para encampar novos intercâmbios criativos com outros autores.

domingo, 24 de outubro de 2010

11º livro - UM CORTE ALÉM DO FIO

 

(Ano - 2008)


 Alguns trechos:








ATITUDE I

Fazer não basta
Assumir o fazer
é como o sal
dentro do gosto

Oreganar a massa
a vida
a atitude
a ideia

Assumir leva à moda
Veste o ato
É como o sabor
na receita

Argumento da mesa
da festa
do tempo
da presença

Construir a história

recompor o poema









 LINHA I


RETA




A reta se espicha
na colheita
do araçá
Escorrega se dissipa
no sumiço do verão

E sem sol
sem cabresto
regulada de azul
se transforma
em ordenada
e tonta tonta fica

e tonta sem girar

A reta se espicha
na vertigem
do viver

e tem pressa de chegar






Lúcio declamando A espera e a esquina

A ESPERA E A ESQUINA

A espera é despótica
e majestosa
Traz o instante
e a história
Aonde iremos
sem saber da esquina?









sábado, 23 de outubro de 2010

10º livro - EPITALÂMIOS PARA ELZA


(Ano - 2008)



Trecho:




VISÕES E VONTADES

Escolhe dois cavalos
na baia do luar
Um negro para o rei
Um ruço para os sonhos
Ensina-lhes dos vôos
segredos do condor
terás as espáduas
as asas do albatroz
Em teu seio guardarás
os anis da paixão
a amplidão será livre
e tua rosa e o teu metro
Escolhe dois cavalos
na baia do luar
Um negro para o rei
um ruço para os sonhos




sexta-feira, 22 de outubro de 2010

9º livro - ÀS MARGENS DE UM RIO CEREAL


(Ano - 2006)



Alguns trechos:




O POETA – Para Mário Quintana
Na praça do Conde
eu vi o poeta
As ruas nos cabelos
No riso a flor do mangue
Tinha um jeito
de barco no Gasômetro
e a paz azul
das ilhas
do Guaíba
No olhar
o lerdo brilho
das escamas
e o manso do rio
e dos cardumes
Gestos minuanos
estavam nele
luz tez pólen grão
o severo das palavras
o mimo da canção
Jacarandava
nas calçadas
e na certeza
de seu povo
miragem clara
de anseio
ilusão


O DESCANSO DO RIO
Aqui o rio
descansa o sonho
e a semente
As pedras
seu guarda-braço
as sombras
as orações
Calcula
quantos peixes medirão
o caminho até o mar
Quantos naufragados
quantos gramas
de erosão
nos seus veios
assoreados?
Remanseia
e se refaz
um remo
em cada escama
impulsa-lhe as águas
se espreguiça
se arrepia
E vai...

CORES
Dá o vermelho
arrogância
à morte
Chenile de chuva
vínculo do corpo
ao barro
da vida
Lívido mármore
o luto
a palidez consagra
Horas sem véu
pose extremada
num galanteio
mudo
Azul concluso
entre o real
do morto e a raiz da coifa
no ventre refaz
o cediço
dos longes
E toga o poeta
no ritual
dos ciclos
a vogal
do tempo
 


 

CONCESSÃO
Aos homens
não somente o vinho
o beber o vinho
e os sonhos
Às mulheres
tudo o mais
mormente o amor


MEDO
O medo da palavra
assusta
quem procura
Caminha o pássaro
nas dobras
do silêncio
Impulsa-lhe a fuga
num voar calado
uma vogal ao longe
sem diapasão
no vento
e o medo
o mutismo
a palavra


ORIGEM
A linha
é Deus
Tudo o mais
enchimento
E é nosso










8º livro - UM POUCO ANTES DA CHUVA


(Ano - 2006)



Alguns trechos:
O MAR E O AMOR
Uma vida é muito pouco
para quem quer ver o mar
Menor ainda
para conchecê-lo de perto
seus ventos
suas líquidas lavouras
as sementes dos deuses
as orações dos peixes
feitas de gesso e silêncio
Uma vida é muito pouco
para quem quer amar
Menor ainda
muito mais
para conhecer o amor
e seus desvios
seus bosques e caprichos
e os pássaros arredios
azuis e amarelos
nas telas do voar


CABLOCOS DA ALMA
Cablocos de minha mata
correi
A trilha da paca é verde
e o caititu já passou
no rastro
da sucuri
É cedo ainda lá fora
e a noite virá depressa
na frouxa flecha do vento
facho e feixe
do tempo
feitiço dentro de mim
Cablocos de minha mata
correi
Meardros de minha sombra
já cobrem as mechas das sarças
que racham o rosto
das pedras
Deixai a paca no coito
O caititu já passou
no rastro
da sacuri


SEM NADA DIZER DA NOITE
Amanhã pardo ainda
sem nada dizer da noite
eu morrerei
Que bom ser assim
de pedra e vidro sem rugas
este edital
Amanhã repito
antes que o sol
desimenize a madrugada
estarei morto
E ainda assim
sonho nenhum deixará o jardim
Já não tenho
o mundo entre os dedos
para brincar de desejos
e temer sua queda
e gemer suas dores
Um dia ele foi meu
e eu pude doá-lo
a cada pessoa
sem perder sua posse
E a doação se fez erva
se fez monte
Agora só poucos
detêm o Mundo
e apertado ao peito
com percinta de ferro
E matam por ele
E não têm domínio
Foi bom saber por isso
que pardo ainda
sem nada a dizer da noite
eu morrerei amanhã



CONSTRUÇÃO
Entre a napa e o espelho
permaneço esférico
Não cavalgo
as curvas
nem a vermelha luz
das estrelas velhas
Penetro a forma
conservo
o teto
Gero meu jeito
Fujo das redes das fronteiras
Salto no primeiro orvalho
E no espaço
de meus sólidos
meus verões
construo
Trajo formigas
Cigarras visto
E
sou


VIOLÃO Para Wilma de Carvalho
Há um violão
no coração do bosque
nas folhas das árvores
nas ervas das pedras
no desenho das cobras
entranhado nos leques
das asas dos pássaros
bebendo
o ar
e o sol
carpidos das cordas
Eu sei
porque no meu peito
também toca
assim
uma harpa
antiga


LUAR E VIDA
Havia uma casa
em cada luar
E uma noite arrastada
muito cansaço
sem rendição
Havia um luar
para cada casa
Uma casa para cada vida
mutirão sem fôlego
monossílabo
de Deus
Havia uma luz
e tantos luares
E uma noite
solitária